Leitoras com Swag

Hey garotas, beliebers ou não beliebers. Só estava faltando você aqui! Nesse blog, eu, Isabelle, faço IMAGINE BELIEBERS/ FANFICS. Desde o começo venho avisar que não terá partes hots nas Fics, em nenhuma. Repito, eu faço 'Imagine Belieber' não Imagine belieber Hot. A opinião da autora - Eu, Isabelle - não será mudada. Ficarei grata se vocês conversarem comigo e todas são bem vindas aqui no blog. Deixem o twitter pra eu poder seguir vocês e mais. Aqui a retardatice e a loucura é comum, então não liguem. Entrem e façam a festa.
" O amor não vem de beijos quentes. Nem de amassos apertados. Ele vem das pequenas e carinhosas atitudes."- Deixa Acontecer Naturalmente Facebook.
Lembrem-se disso. Boa leitura :)

Com amor, Isabelle.

domingo, 27 de agosto de 2017

One Love 14

— O que? — não confiei em meus ouvidos, meus leais parceiros há 21 anos, preferindo dar credito à Ryan. Ele não me esconderia uma coisa daquelas.
A voz no fundo da minha cabeça me avisou que assim como eu omitia informações, ele também podia. Isso não tornava menor o sentimento sólido de amizade que eu sentia por Ryan, então a reciproca era verdadeira. Certo?
— Justin havia pedido que eu os procurasse — respondeu ele hesitante, os olhos estudando minha reação.
Também esperei minha reação.
— Por que não me contou?
— Pelo mesmo motivo que você.
Duas antas. Esse tempo todo agimos um pelas costas do outro, sendo que poderíamos ter nos ajudado e realizado o trabalho muito mais rápido.
— Aonde estavam e aonde estão agora?
Ryan virou de costas, andando até a janela e olhando pelas cortinas.
— Isso não vem ao caso agora. Preciso que me garanta não tentar nenhuma estupidez, me diga que ficará aqui até eu dizer que está limpo.
Ignorei o que dizia.
— Eles estão bem? Quem está cuidando deles? Justin te pediu para procurar Patricia também? As crianças estão com ela?
— Sim, Faith, para todas as perguntas, você pode me ouvir agora?
— Você conheceu Pattie? Perguntou por que ela abandonou Justin?
Ele me olhou fixamente, prendendo minha atenção.
— Você está se centrando nas questões erradas. Estão todos bem, entendeu? Portanto, temos que garantir que você vai ficar também.
A inquietação cresceu em meu peito.
— Eu quero saber aonde eles estão. Como posso ter certeza de que não está mentindo, Ryan?
— Eu não mentiria sobre uma coisa dessas — me afirmou.
Comecei a andar pela sala, imitando o movimento circular e contínuo dentro da minha cabeça. Meus neurônios estavam caçando. Eu ainda não entendia o que, mas estavam.
— Eles estavam no orfanato? Geroge deixou seus nomes como Yasmin e Maxon para que não os achássemos?
Ryan demorou a responder, e eu parei para lhe olhar exigente.
— Responda à pergunta!
Ele levantou as mãos, me analisando com afinco.
— Não. Você está falando sobre as crianças que você visitava no orfanato?
Assenti fervorosamente, e ele negou.
— Sobre o desaparecimento delas, a polícia ficará responsável. Não há nada que você possa fazer por eles agora.
O caminho dos neurônios se cruzaram e eles começaram a se chocar uns contra os outros. Meus olhos piscaram várias vezes, a respiração se tornou irregular, o coração perdeu o compasso. Alguma coisa estava muito errada com meu corpo. Procurei razões para os ataques em minhas terminações nervosas. Nada estava claro.
— Você está bem? — Caitlin se manifestou, a voz preocupada.
Recuei até o sofá, me sentando. Minha visão estava perdendo o foco.
— Estou. Ryan, o Justin... — comecei a dizer, incerta do que falaria.
— Você não deve nada a ele, Faith. Mesmo que devesse, já está tudo resolvido. Podemos nos centrar em você, por favor?
Minha mente se clareou então, como numa explosão. Jaxon e Jazmyn já estavam seguros, mesmo sem que eu os resgatasse, e eu provavelmente nunca veria seus rostos. Patricia também não era mais um fantasma, e agora ela formaria uma família com os irmãos de seu filho falecido. Talvez tivesse se arrependido de tê-lo abandonado, talvez tivesse sido obrigada a deixá-lo para trás, mas agora consertaria seu erro, os três seriam muito felizes. E nunca saberiam da minha existência. Meu trabalho estava feito, melhor do que se eu tivesse executado. O propósito era desde o início deixar Jaz e Jax com Pattie para que criassem esse vínculo e mantivessem Justin vivo naquela relação. Agora, tudo estava pronto sem que eu precisasse explicá-los o motivo pelo qual tivera o trabalho. Como olharia nos olhos de Patricia e justificaria “era minha responsabilidade porque eu fui a razão pela qual Justin morreu”? Sinceramente, eu não pensara por muito tempo naquela incógnita, e não precisava mais o fazer também. Os assuntos de Justin estavam finalizados.
— Você contou pra ela onde fizeram o túmulo? — perguntei à Ryan. Desde o início, eu prometera a mim mesma que uniria Justin à sua mãe, e embora essa não fosse a forma ideal, era a única que me restara.
Ryan ajoelhou na minha frente, suas mãos tocaram meus joelhos, um toque que mal percebi.
— Sim.
— Aonde Patricia estava? — pensei ter dito, não pude ter certeza, não ouvira com clareza minha voz.
— Na Califórnia.
Justamente o lugar que Justin planejava ir comigo para escapar da confusão do ano passado. Indaguei-me se ele sabia que ela estava lá, e por esse motivo aquele fora o estado escolhido. Alguma informação em meu subconsciente avisava ser quase impossível, mas mesmo assim, minha imaginação vagou. Podia ser uma surpresa para ambas, ele nos apresentaria como três das mulheres mais importantes da sua vida — com Jazmyn sendo a terceira integrante —, jantaríamos em um restaurante perto da praia e os olhos de Justin brilhariam mais do que a própria lua, quase inteiramente feliz, quase inteiramente completo.
— Faith? — Caitlin me chamou ao longe, me contagiando com sua tensão.
Eu senti cada parte de mim ruir, e aquilo doeu mais do que a própria morte. Dizem que a morte é fácil, leve e tranquila; não é totalmente verdade. Se pensarmos que a vida de alguém afeta apenas a ela mesma, até pode ser uma teoria plausível. Na prática, não é assim que ocorre. A morte te rasga de dentro para fora e remenda todos os pedaços outra vez para te comer viva de novo, e de novo, e de novo. Eu fui cruelmente um dos experimentos para demonstrar sua habilidade destrutiva.
Por todo esse tempo, Justin ainda vivia em mim como o propósito de finalizar o que ele começara. E agora que tudo estava resolvido, o que restava para mim? Qual era o sentido de continuar aqui? Qual era a minha utilidade? Justin estava morto. Não havia ao menos restos mortais seus para vermes necrófagos consumirem.
Glândulas no meu rosto, que estavam há muito inativas, iniciaram o processo de atividade, pipocando embaixo dos meus olhos.
— Você ainda quer saber como te achei no shopping? Eu te segui, sei que a assistente de George descobriu que você a usava — Ryan disse repentinamente, apressado — Sei que você odeia que te vigiem, mas eu não podia te perder de vista.
Justin estava morto.
— Posso até ter ouvido sua conversa com Rafael — acrescentou, sua resposta ao meu silêncio.
Justin estava morto.  
Garras invisíveis puxaram todos os meus músculos para o centro do meu coração, deixando um rastro de agonia por todo o meu corpo.
— Você também queria saber de onde saiu essa cabana, não é? Eu e... a comprei quando morava aqui. Era meu refúgio. Ninguém sabe sobre esse lugar. Eu mesmo a construí.
Justin estava morto.
A sentença gritada em alerta reverberava pelas minhas veias, tentando escalar pela minha garganta.
— Faith, o que foi? — o rosto de Caitlin substituiu o de Ryan na minha frente. Eu não sabia como aquilo havia acontecido.
Eu precisava de uma escapatória, e meu organismo negava a solução que me ajudara por tanto tempo em momentos desesperadores como esse, álcool.
Meu rosto inteiro se contorceu para que eu conseguisse empurrar as palavras uma a uma para fora da minha boca:
— Como você lida com isso?
Não soube se ela havia entendido até que sua preocupação cedeu lugar à angustia e seus braços me apertaram contra si, tentando dividir minha dor consigo. Mesmo que eu quisesse não poderia avisá-la, aquele era um calvário feito sob medida para mim, não havia como fracioná-lo.
— Ele não merece isso, Faith.  Você sempre foi luz, não deixe que ele te tire isso... — Ryan começou a dizer.
Eu mal o ouvia, engasgada com todo aquele sentimento cáustico, não conseguia respirar. E de repente, um som estranho saiu pela minha boca, parecia-se muito com um gemido ferido. Uma ferida oriunda da alma. O som de um morto vivo.
— Não é sua culpa, não é culpa de ninguém, não é culpa de Deus. Aquela era a hora dele, ele veio para a terra com um propósito, acredita nisso? E ele cumpriu a missão, Faith. Se sinta grata pelos momentos em que pode ter junto dele e peça a Deus para que trate essa saudade que ficou no lugar — Caitlin murmurou no meu ouvido com convicção, a própria voz embargada — Você também nasceu com um propósito e o seu ainda não acabou, se agarre a essa verdade, Deus vai te ajudar com isso, só Ele pode te mostrar o caminho, só Ele pode te curar, só Ele não morre nunca e sempre vai estar com você.   
Foi o que bastou para aquele bolo sair como vômito da minha garganta, mas ao invés de resultar em resíduos gástricos manchando a blusa de Caitlin, emiti um soluço e meu rosto se banhou do líquido expelido por minhas pálpebras. Percebi que chorava, depois de tanto tempo sem poder usufruir daquele reflexo equilibrista da angústia aguda que consumia minhas entranhas.
— Justin não merece seu sofrimento, Faith, sabemos muito bem o tipo de pessoa que ele era... — Ryan insistiu mais alto, aparentando irritação.
— Cala a boca, Ryan — Caitlin ordenou, voltando a falar em meu ouvido em seguida — Conversando com Deus, é assim que lido com isso. 
Àquela altura, eu estava disposta a tudo para fazer com que aquela dor parasse, recorreria a qualquer medida que me apresentassem, então gritei Seu nome em minha mente repetidas vezes. Eu me lembrava vagamente das palavras bonitas que usava para rezar, mas nenhuma delas me ocorreu como inspiração. Tal qual meu coração batia, a palavra era reproduzida.
Deus! Deus! Deus! Deus! Deus!
 Minha alma queimava no fogo eterno, e o apocalipse nem mesmo havia acontecido para que eu sofresse aquele castigo. O calor se concentrou em meu peito, combatendo ao frio instalado ali durante todos aqueles meses. Tive a impressão de ter ligado um chuveiro na água quente, que de início me abraçava e aquecia, e então se concentrava demasiadamente, derretendo minha pele aos poucos.
— É preciso cutucar uma ferida para curá-la, Faith, vai ficar tudo bem.


Eu lutei contra a consciência pelo máximo de tempo que pude, contudo, alguma coisa me puxava insistentemente do meu sono limitado sem sonhos. Mesmo acordada, não tive vontade de enxergar o mundo à minha volta, decidida a esperar a morte chegar ali mesmo — desejei ter o número de Annelise para implorar que me matasse. Se Deus não me fizesse um milagre imediatamente, eu não conseguiria suportar mais um segundo na terra.
Meus olhos doloridos e pesados, como se dois sacos de areia pendessem deles, insistiram, entretanto, em abrirem-se. A escuridão dominava o ambiente, e absorvi aos poucos o quarto em que eu estava. Não havia me dirigido para lá sozinha, assim, deduzi que Ryan ou Caitlin haviam me levado até ali quando me esgotei o suficiente para dormir. A colcha da cama de casal era preta e o outro único móvel habitante do quarto se resumia a um guarda roupa grande embutido na parede aparentemente cinza. Minha mala estava empoleirada bem na frente dele, e por um momento me distraí pensando se meus amigos trouxeram todas as minhas coisas. Não tivemos muito tempo para conversas.
Arrastei-me para fora da cama, minha garganta ressecada rogava por água. Me aliviava ainda deter o poderio de satisfazer alguma necessidade do meu corpo destruído por dentro. Impelida por essa necessidade, empurrei a porta entreaberta, portando a mínima curiosidade de onde Ryan e Caitlin estavam. Se Ryan construíra a cabana sozinho como seu refúgio, não fazia muito sentido que delimitasse mais um quarto.
Meu raciocínio foi quebrado quando dei de cara com mais duas portas naquele corredor. Uma podia ser um banheiro, mas e a outra? Desinteressada com a estrutura, prossegui meu caminho, parando apenas ao ouvir os sussurros que partiam da sala. Eu não queria atrapalhar mais do que já o fazia, um mero estorvo na terra. Percebi que Ryan falava sozinho, ou, a alternativa mais lógica, ele conversava no telefone.
— ...  Eu não concordo com isso, desde o início fui contra. Qual é a porra do seu problema? — ele parecia ter dificuldade em manter o tom de voz baixo, furioso com quem quer que fosse do outro lado da linha. Sua garganta produziu uma risada ácida — É fácil pra você dizer! Quem está vendo as consequências de tudo isso sou eu. É cruel. É muito cruel.
Tentei dar sozinha algum sentido à conversa. De alguma forma, eu sabia que Ryan não responderia satisfatoriamente se eu perguntasse o que estava acontecendo. Caso contrário, não estaria discutindo no escuro com uma incógnita a essa hora da manhã escondido de mim e Caitlin. A não ser que não fosse culpa dele a ligação ter ocorrido nessas circunstâncias. 
— Se você não der resultados razoáveis eu vou fazer alguma coisa sobre isso. A situação se agrava a cada dia, não vou assistir isso de perto e não fazer nada a respeito... — ele foi interrompido e esperou os efeitos de sua ameaça — Não, eu não acho isso plausível, pode usar todos os argumentos que quiser, não vou mudar de ideia.... Isso é responsabilidade sua, mas se piorar, e eu acho que vai, vou contar a ela.... Então resolva isso logo, e assim posso ficar longe de toda essa droga.
Quem seria ela? Eu nunca vira Ryan tão furioso com alguém como presenciei nessa ligação.
Os pontos estavam se ligando antes que eu pudesse impedi-los. Eu não aguentava mais as teorias de conspiração que masoquistamente eu construía para afastar a realidade grotesca da ausência de Justin. Repugnando a mim mesma, voltei para o quarto num jato, jogando a mala azul no chão e abrindo o zíper. 
Joguei as roupas para todos os cantos do quarto, procurando. Eu não sabia se meus "tutores" haviam levado à cabana e se chegaram a bisbilhotar o objeto, mas continuei a busca até meus dedos esbarrarem no caderno de cem folhas surrado. O abri com ímpeto e rasguei as folhas uma a uma desvairadamente. 
Quando abandonei a pintura, a necessidade de me expressar para o mundo exterior não morreu, e a transferi toda para a escrita em seus mais variados gêneros e formas. Meu caderno estava cheio de textos incompletos; eu não gostava mais de derramar todo o meu ser em uma tela, muito menos em um papel, mas aquela ânsia por vezes se mostrava incontrolável. E inevitavelmente, todos os temas se referiam ao Justin, potencialmente lunáticos e delirantes.
Parei na última folha que eu usara, tomando fôlego para eliminar mais aquela parte de mim. Meus olhos caíram nos escritos desleixados que eu fizera na segunda-feira de manhã em uma folha da agenda da galeria e colara no caderno ao chegar em casa.
“Meu coração bombeava o sangue rápido demais e eu me perguntava se o estava fazendo direito.
(...)
 — Justin, não temos tempo pra isso, nos vemos mais tarde — tirei minha mão da sua e a abanei na frente do meu rosto, esperando que desaparecesse. 
Não aconteceu. Ele continuava me olhando com o maxilar travado.
(...)”
Eu tinha que parar de me enganar pensando que ele voltaria. 
Antes que eu pudesse picotá-la em pedaços minúsculos, as linhas azuis e a tinta preta da caneta se misturaram, machadas com água. Fazia pleno sentido que meu corpo se sentisse extremamente desidratado.
Respirei fundo depois de ter concluído todo o trabalho, na esperança de que sentisse ao menos um pingo de alívio. Olhei a bagunça que eu deixara ao meu redor, traduzindo muito bem a confusão em pessoa que eu havia me tornado. Aquilo me deixou sufocada. Eu só precisava sair dali.
Deixei o quarto sem me preocupar se Ryan ainda estava em sua ligação secreta, atravessando o corredor, e em segundos, a sala. Abri a porta da frente e saí para a opacidade da noite, o ar fresco não me deixou com frio, meu corpo ainda vestia a calça preta e blusa azul de seda que eu vestira para trabalhar. Detive-me na entrada, estar ali fora já bastava. Sentei nos degraus da varanda e joguei a cabeça para trás. Não era possível atingir o cansaço mais do que o que eu atingira.
Precisei de um momento para reparar que estava encarando o céu salpicado de estrelas, o qual eu evitara veementemente ultimamente. Eu abrira mão de muitas coisas na minha vida, me privando do que poderia me trazer o mínimo de felicidade por não me achar digna desta regalia. E eu realmente não era. Não que olhar o céu fosse me trazer felicidade, as estrelas pareciam ser pintadas com minha dor, me lembrando de experiências que não estavam mais ao meu alcance. Foi fácil localizar o corpo celeste que eu chamara de Faithin, tanto como admitir que eu precisava acreditar em algo de novo.
Uma sensação diferente aqueceu meu coração, não como o fogo que me queimara mais cedo, mas semelhante a um ponto de conforto. Eu ainda tinha utilidade. Meu contrato buscava ferir minha família, não somente a mim, e eu devia pelo menos garantir que ficassem bem. Não consegui salvar Justin, mas era minha responsabilidade proteger aqueles que inicialmente me amaram. Caleb sempre me protegeu e essa era minha vez de retribuir o favor. Até mesmo aos meus pais, que eu não queria ver nem pintados de ouro.
— “Mas alegrai-vos porque os vossos nomes estejam escritos nos céus”.
Virei a cabeça para onde vinha a voz de Ryan. Ele contornava a cabana, e sentou-se ao meu lado na varanda.
— Isso tem cara de uma passagem bíblica — comentei.
— E é. Lucas 10, 20.
Ryan pegou uma folha aos meus pés, brincando com ela. Parecia bem mais calmo do que eu o vira há pouco.
— Não sabia que você era do tipo religioso.
Ele deu de ombros.
— Todos precisam acreditar em alguma coisa. Não é porque não sigo algumas regras que não acredito.
Ryan e eu nos conhecemos em um tempo já turbulento demais, então não havíamos tido algumas conversas essenciais para se criar um vínculo entre pessoas. Eu não sabia que ele tinha religião porque nunca havia perguntado.
— Eu ia na igreja com minha mãe quando era mais novo, e essa foi sempre minha passagem preferida. Ter meu nome escrito no Céu era uma coisa gloriosa pra mim. Naquela época eu queria ser astronauta.
Voltei meu corpo totalmente para ele, surpresa. Seus olhos permaneceram na folha.
— Perdi o rumo quando ela morreu de câncer. Meu pai era só um bêbado patético que não ligava para o filho, então fugi de casa. Foi quando Jeremy me encontrou.
Coloquei a mão no peito, como se pudesse conter o impacto, segurei seu ombro com a outra.
— Ry... Eu sinto muito.
Me senti péssima por não conhecer sua história, tão preocupada comigo mesma que deixei de ver que eu não era a única a ter problemas.
Ele me deu um meio sorriso.
— Não se preocupe com isso. Só queria te dizer que minha mãe era tudo pra mim, e mesmo assim eu aprendi a viver sem ela. Mesmo me tornando alguém que tenho certeza ser digno da sua desaprovação, eu vou me encontrando aos poucos. Pensei que eu não tinha mais sentido para estar aqui e apenas vivi, mas conheci você e a Caitlin, e entendi que a vida pode ser generosa se você se abrir a isso, mesmo depois de um tombo desses. Vocês duas são prova de que até alguém como eu merece ser feliz.
Concordei com a cabeça, embora ainda digerisse suas palavras. Era bom saber que eu ainda podia ser considerada como um presente para alguém.
Ryan passou as mãos em meu rosto com a testa vincada.
— Não consegue mais fechar a torneira?
Eu dei uma risadinha e ele me puxou para um abraço.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

One Love 13

— Eu não sei do que você está falando — aleguei imediatamente, desenroscando minha bolsa e me colando em pé devagar, sem tirar os olhos de sua postura.
Maya esticou o lábio num sorriso de deboche acusatório.
— Por isso está fugindo de mim?
Coloquei a bolsa atravessada na frente do meu corpo. Seria patético usá-la como arma, mas eu o faria se precisasse. Eu não conseguira lutar contra Annelise, e não planejava deixar o fato se repetir com Maya. Invoquei todo o meu conhecimento — raso — de Krav Maga, premeditando os primeiros golpes. Sua arma de fogo não estava à vista, assim, ela levaria alguns segundos para conseguir pegá-la, o que já me deixava em vantagem.
— Você também fugiria de você mesma se pudesse se ver agora. Sei que não vai me ouvir, já está convencida dessas besteiras que está pensando — menti descaradamente.
Dessa vez ela não caiu, os olhos fervendo de ódio a motivando em dar um passo na minha direção. Recuei, separando os pés, posicionando a perna esquerda à frente.
— Para de mentir pra mim! As crianças desapareceram depois que te levei em um tour idiota pela Companhia. George quis saber se alguém diferente havia passado por lá. Eu tive que cobrir nossos rastros com alguns favores, acabei descobrindo que perguntou para Max sobre uma ala infantil. Sabe o que ele me cobrou para esquecer isso?! E depois George estava falando de você com uma das funcionárias, mandando que ela investigasse se você tinha algum envolvimento nisso. Aquilo está um inferno! E não é uma terrível coincidência! — ela fechou as mãos em punho, elevando a voz — Agora me diga, aonde eles estão?
Minha morte estava terrivelmente próxima, todas as cordas imagináveis se enrolavam em meu pescoço. A única coisa que eu podia fazer era adiar o evento. Os resultados seriam os mesmos. Hoje, amanhã, ou semana que vem.
— Maya, você não está pensando direito — levantei minhas mãos em rendição, persuasiva.
— Se você não me disser por bem, será por mal.
Maya avançou. Talvez pela aula de Krav Maga ter sido no mesmo dia, ou Maya não ter treinado especificamente para lutas corporais, tive facilidade em lhe dar um dos golpes que memorizei. Mantive os joelhos flexionados para ter mobilidade, fechei os punhos e trouxe o cotovelo direito para perto do corpo, o qual virei levemente para a direita; girei o torso até ficar de frente para ela, enrijeci o corpo e respirei regularmente, potencializando o soco. Mirei no meio da mandíbula, utilizando a forma sideswipe, atingindo-a pela lateral, forçando sua cabeça para o lado para que seu cérebro quicasse nas paredes do crânio, provocando a inconsciência. Ela caiu como um saco de batatas no chão. Simples assim. Fiquei ainda em posição de ataque por alguns segundos para garantir de que não acordaria. Depois, num impulso incontrolável, corri em direção à saída, não pensando o suficiente para procurar alguma arma nela que a colocasse em vantagem quando acordasse.
Embora minhas pernas estivessem trêmulas, fosse por esforço ou medo, encontrei um instante breve para me sentir orgulhosa de mim mesma. Tive vontade de voltar e tirar uma foto para apresentar ao meu professor, Caitlin e Ryan, o meu feito. Frágil é uma ova.
Passei atrás da máquina de validação do estacionamento ofegando. Maya não ficaria desacordada para sempre, então redobrei minhas forças, me impelindo pela rampa em direção ao fenômeno do sol largando seu turno no dia para ceder espaço à lua. Havia um ponto em frente ao shopping, e mesmo sem saber qual o destino do ônibus prestes a sair — ou se tinha dinheiro suficiente na bolsa para pagar a passagem — agitei os braços acima da cabeça, tentando dar sinal ao motorista para que parasse.
No meio da minha corrida desesperada, me sobressaltei com a manobra de um porshe preto estacionando muito próximo ao meio fio sem que desligasse o motor. A porta do carona se abriu e a voz ordenou:
— Entra!
Minha paralisia esperançosamente gelada se prolongou até que Ryan se inclinasse sobre o câmbio na minha direção.
— O que está esperando, Evans?!
Pulei para o banco instantaneamente. Ryan mal me esperou fechar a porta para cantar pneus.
— O que porra...? — ele começou a perguntar, a irritação saindo por seus poros.
Era exatamente o que se passava na minha cabeça. Eu estava duplamente fodida. 
Minha mão posicionada no meio do peito acompanhava todo o trabalho que meu corpo tinha para tentar regularizar minha respiração. Isso indicava minha proximidade com o sedentarismo, o que não era muito bom para uma pessoa efetivamente correndo da morte.
— Como conseguiu esse carro? — devolvi com minha própria dúvida. Precisava mesmo ser um Porshe preto? Ryan ainda não comprara um carro porque estava economizando para um que o agradasse, mas eu sabia que não poderia ter conseguido tanto dinheiro assim até agora.
— Nós conversamos sobre seu trabalho, não um passeio no shopping! — bradou.
— Como soube que eu estava aqui?
Ele bateu a mão no volante seguidas vezes. Estava declarado, eu preferia seu espírito despreocupado.
— Caralho, Faith.
Antes que eu o pressionasse para dar algum sentido à tudo aquilo, pensei em Rafael sozinho no shopping, e me perguntei se Maya seria capaz de lhe fazer algum mal.
— Precisamos conversar — Ryan disse incisivo.
como precisávamos.
Disquei o número de Hazel, colocando o celular na orelha. No terceiro toque, ela atendeu doce como um limão.
— Me passa o número de Rafael, por favor? — esforcei-me para ser educada, e mesmo assim, pareci forçada.
— Você não deveria estar com ele? Já deu um jeito de estragar tudo?
Apertei a ponte do nariz, engolindo a vontade de mandá-la para a casa do caralho.
— Nos perdemos. Você tem o número ou não?
Hazel resmungou alguma coisa que fiz questão de não ouvir, e me disse que passaria por mensagem. Sem uma despedida — a qual eu já não esperava — desligou. A que ponto eu cheguei para suportar gente como ela? Mais um ponto positivo de ir para Boston e me livrar desse estrume.
Por estar interessada nos frutos dessa relação, Hazel me enviou o número imediatamente. Assim, mandei uma mensagem explicativa para Rafael. Inventei a desculpa de que uma amiga estava passando mal e tive que correr para ajudar. Não podia ser inteiramente mentira, para todos os efeitos, Maya era minha amiga, e não parecia mesmo estar bem.
— Tenho sua atenção agora? — Ryan perguntou impaciente.
— E você vai me responder?
O carro fez uma curva brusca, me jogando contra a porta.
— Coloque o cinto!
Lhe olhei exasperada enquanto obedecia o comando. Não para ser submissa à sua ordem, apenas porque eu precisava me manter viva um pouco mais. 
— Caramba, o que há com você hoje?!
— Era a assistente de George atrás de você, não era?
Triplamente fodida.
Quanto eu podia dizer sem me comprometer? Ryan me mataria se descobrisse minha verdadeira motivação em mudar para Minneapolis. Decidi protelar.
— Como sabia onde me encontrar, Ryan? E que carro é esse?
Ele respirou fundo, misturando o ato com um arfar ruidoso.
— Aluguei um carro e Caitlin me contou. Satisfeita?
Atentei-me ao seu rosto, pronta para identificar emoções submergidas.
— Não contei para Caitlin que estaria no shopping.
Seu maxilar travou. Eu o pegara na mentira.
Semicerrei os olhos.
— Por que está mentindo para mim, Butler?
— Agora você quer falar de mentiras? Você que começou primeiro.
Quadruplamente fodida.
Cogitei a quais mentiras ele se referia. Ryan não podia ter descoberto tudo. Eu estava sendo bastante cuidadosa. Pelo menos pensava que sim. Não devia ser nada demais. Eu apenas acabaria me entregando se entrasse em desespero. Desviei os olhos para a rua, e assim me atentei às placas. Nos distanciávamos cada vez mais do centro.
— Aonde estamos indo?
Ele não me respondeu, pegou uma estrada solitária à esquerda, quase deslocada demais para estar ali. Árvores altas nos ladearam, abrindo um túnel interminável; a proximidade do verão deixava os galhos cheios de folhas vivas, e eu tinha certeza que aquela vista era muito bonita pela manhã. No momento, entretanto, me dava certa inquietação.
— Ryan!
— Para uma cabana! Não vamos voltar para o apartamento. Não é seguro.
Meu queixo caiu.
— E minhas coisas? Que cabana é essa?
As rugas na testa de Ryan se aprofundaram. Ele olhou pelo retrovisor ao dizer baixo:
— Às vezes eu mesmo quero te dar um tiro na testa.
Indignei-me, cruzando os braços. Preferia ardentemente ter conseguido pegar aquele ônibus sabe-se-lá-para-onde. Sempre vi Ryan com um espírito muito tranquilo para considerá-lo como parte da Companhia Bieber, ele não se enquadrava nas características tenebrosas que os outros possuíam, nem mesmo com Justin eu podia assimilá-lo. Contudo, sua atitude atual confrontava meus pensamentos, eu conseguia distinguir as semelhanças claramente agora. Manipuladores, controladores, obsessivos, egocêntricos e mesquinhos.
— Eu não vou a lugar algum com você. Pare o carro — exigi devagar.
Seus olhos azuis queimaram em minha direção.
— Faith, Caitlin já está lá, e sozinha, não temos tempo para uma discussão. A não ser que você queira brigar durante meia hora e deixá-la assustada no meio do nada.
 Ofendi-o mentalmente por aquele golpe baixo, e cedi de forma tácita. Eu iria com ele até onde Caitlin estava, depois daria meus pulos para voltar ao centro e partiria para Boston às onze da noite. Não havia uma alma viva capaz de me fazer mudar de ideia. Então, fiz voto de silêncio até chegarmos ao nosso destino, e Ryan parecia ter feito o mesmo. A tensão no ar carregava todas as mentiras existentes entre nós, prestes a desabar em nossas cabeças.
O percurso prosseguiu por mais vinte minutos, a paisagem se tornava cada vez mais verde e marrom. Eu não via como aquilo podia ajudar. Um lugar isolado era perfeito para a realização de um crime. Annelise me receberia em uma bandeja de prata. Conforme a escuridão da noite caía sobre nós, a estrada se tornava mais sinuosa, sem pavimentação, visível apenas pelos faróis do carro, serpentava pelas árvores antigas cada vez mais próximas. Pensei que o caminho terminaria e seríamos engolidos pela floresta quando enxerguei a pequena clareira à frente. A iluminação ganhou reforço com o brilho emanando das janelas da cabana. Imaginei que fosse recém construída ou recebera uma reforma recentemente, a madeira de sustentação não me parecia tão velha quanto o esperado.
Ryan parou o carro na frente da porta, e eu desci pisando fundo, ultrapassei os três degraus da varanda em um segundo. Tentei abrir o trinco da porta, e não obtive êxito. Depois de colocar a cara na janela entre as cortinas, Caitlin abriu. Eu entrei como um furacão, meus pés faziam barulho no piso laminado, e parei no meio da sala que portava um sofá de couro preto e a mesa de centro. Pinturas de paisagens naturais se intercalavam nas paredes, e a lareira rústica de tijolos avermelhados estava apagada.
— Se vocês não chegassem em cinco minutos eu ficaria louca — Caitlin suspirou aliviada.
Virei-me para encarar Ryan. Ele fechou a porta atrás de si, carrancudo.
— Você tem exatamente duas horas para me convencer a não ir para Boston. Acrescente a isso algumas explicações.
Ele negou com a cabeça, apontando um dedo na minha cara.
— Primeiro você tem que me contar o que fazia na Companhia sábado de manhã! O que você está bebendo, Faith Evans?!
Elevei meu queixo, fazendo o possível para não derrubar minha dignidade. Se ele sabia disso, o que mais podia saber? E se sabia, andava me espionando?
— Eu estava sendo útil! E como você também sabe disso?!
— Um passarinho verde me contou!
Fuzilei-o com os olhos pelo deboche desnecessário, e então, Caitlin entrou no meio, literalmente, as mãos estendidas como se apartasse uma briga.
— Vocês dois podem parar com isso? Primeiro de tudo, abaixem o tom de voz, respirem fundo, e alguém me explica o que está acontecendo.
— Ele está me escondendo coisas. Odeio mistérios — disse eu, cheia de razão e fúria.
Ryan bufou.
— Olha quem diz! A garota que nos passou a perna por cinco meses! Eu sei que não viemos justo para Minneapolis por um capricho do destino.
Quintuplamente fodida.
Caitlin se virou para mim.
— Faith, do que ele está falando?
— Conte pra ela no que você tem gastado suas energias além de encher o rabo de bebida!
Ele sabia. Apenas queria que eu confessasse de uma vez. Minhas mentiras resolveram cair por terra no mesmo dia. Coincidência? De qualquer forma, não adiantava mais negar. Não para eles.
— Eu estava procurando os irmãos de Justin, ok?! — despejei de uma vez — E agora não vai resolver nada porque até mesmo George os perdeu de vista! Pensei que eles estavam aqui, mas descobri que estão em Boston! Então tenho que voltar imediatamente para encontrá-los! É minha responsabilidade fazer isso! Eu devo ao Justin.
Ryan e Caitlin eram as pessoas em quem eu mais confiava ultimamente, portanto, dizer aquilo, finalmente, foi como tirar um peso enorme de minhas costas. Não percebia que me incomodava em omitir até jogar tudo na mesa. Mesmo que isso me deixasse mais fodida do que uma prostituta.
Esperei o veredicto.
— Irmãos? — Caitlin perguntou baixinho.
Ryan desviou o rosto, amenizando a expressão.
— Nós não vamos voltar para Boston — ele disse firme.
Discordei.
— Você não está entendendo. Eu vou voltar. Só quis informar vocês porquê da última vez que fugi não deu muito certo — despropositalmente, finalizei a sentença com menos força do que planejava.
— Você disse que eu podia te convencer do contrário, e eu tenho um plano. Ouça — pediu quando fiz menção de interromper — Annelise está sendo distraída nesse exato momento para que pudéssemos te trazer aqui. Vamos conseguir arrancar dela o nome do contratante e dar um jeito nele de uma vez por todas. Ela não tem como te incriminar de alguma coisa, Faith, só tem teorias loucas que até mesmo George dúvida. E então, quando dermos um jeito nisso, você pode sair daqui. Pode voltar para Boston se quiser, ou qualquer outro lugar. Ela nunca mais vai te perturbar, nem ninguém da Companhia Bieber.
Dei um passo para trás, ainda sem me convencer.
— Distraída? Agora você sabe que não quero ir para Boston só para fugir de Annelise. Tenho que encontrar... — minha boca se fechou enquanto meu cérebro trabalhava. Eu tinha que encontrar quatro crianças, todas desaparecidas no sábado, aparentemente. Maxon e Yasmin, Jaxon e Jazmyn. Várias teorias de conspiração ocuparam todo o espaço disponível em meus neurônios. Por suspeitar do meu envolvimento, George podia ter sequestrado Maxon e Yasmin ao saber do sumiço de seus netos para usá-los contra mim. Ou então.... Quão ridículo era os nomes serem tão parecidos? No material conseguido ano passado — que eu não sabia onde fora parar —, constava que Jaxon tinha sete anos e Jazmyn nove. Yasmin e Maxon não podiam ser muito mais velhos do que isso. 
Recusei-me a concluir o pensamento, essa era a hipótese mais absurda que eu já criara. Uma simples ilusão otimista demais para que eu resolvesse dois problemas com apenas uma solução. Hipótese esta que me dava embrulhos no estômago só de pensar. Se assim fosse, Justin e eu convivemos com eles o tempo todo, principalmente eu. E era impossível esquecer o quanto Maxon havia se dado bem com Justin, de forma que até lhe enviasse um desenho através de mim. Esforçando-me, eu até podia listar algumas semelhanças físicas entre eles.
Parei por aí, evitando que entrasse em colapso.
—... Você me ouviu? — Ryan passou a mão na frente do meu rosto.
Pisquei, voltando ao momento presente. Caitlin permanecia com a expressão de espanto, e não pude deixar de fora o quanto era estranho Ryan saber de Jaxon e Jazmyn. Pelo que eu sabia, Justin apenas compartilhara comigo esse segredo. Como ele estava descobrindo todas essas coisas de repente?
— O que disse?
— Você não precisa voltar pra lá, porque fui eu que os peguei. 

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

One Love 12

Ryan andava de um lado para o outro, completamente perturbado, ele estava naquele circuito desde a hora em que chegamos em casa; eu já havia tomado banho, comido um lanche natural, e sua maratona não chegara ao fim. Alarmado por uma mensagem de Caitlin sobre minha visita noturna, fora nos encontrar na escola de Krav Maga. Normalmente, seu turno terminava às quatro, então àquela hora ele ainda estaria dormindo. Seus olhos estavam fundos e loucos, me deixando na dúvida de que realmente dormira. Depois da visita de Annelise, não consegui dormir novamente, mas não achei ideal chamá-lo, não podia ter certeza de que ela não voltaria, e não arriscaria que descobrisse Ryan vivo. No fim, eu estava certa em tomar aquela decisão. Ryan era o cara mais despreocupado do mundo, e agora estava praticamente subindo de nervoso pelas paredes.
Coloquei as mãos na cintura com um ruído, exasperada.
— Ryan!
Ele me olhou, despertando do transe. Caitlin batucava os dedos na perna, observando a cena do sofá.
— Você não precisa ficar nervosa, Faith. Vamos cuidar disso — e então seus olhos pararam no meu braço. Eu havia tirado a faixa para tomar banho e ainda não colocara de volta — Ela começou a contagem?! — ele quase gritou, ficando pálido.
Eu nunca o vira assim. Quando estávamos prestes a morrer ano passado, ele ria. Sua reação estava triplicando meu nervosismo. Como se não bastasse ter tanta coisa para me preocupar, Maxon e Yasmin estavam desaparecidos, umas das minhas crianças preferidas no orfanato, embora eu não tivesse feito propositalmente uma classificação. Há dois anos eu visitava o orfanato, e desde o primeiro dia eles estavam lá. Caleb me dissera que sumiram no sábado à noite, e que os Evans estavam dispostos a ajudar como pudessem. Seria possível o mundo me decepcionar mais? Depois de mais esse golpe, formei minha decisão.
— Temos que voltar para Boston.
Ryan negou quase que imediatamente.
— Você não conhece Annelise, ela não vai te perder de vista. Não vai permitir que você vá embora.
— Não vou deixar que ela dite o modo como vivo minha vida. Além do mais, duas das crianças do orfanato que eu visitava estão desaparecidas, eu tenho que ajudar de alguma forma.
A maratona de Ryan recomeçou.
— Você tem que se ajudar primeiro. Se ela te marcou com a contagem, quer dizer que com certeza está com um contrato seu. Quem sabe um proposto pelo próprio George?
Passei as mãos no rosto, como se quando abrisse os olhos de novo tudo estaria acabado. Não achava que fosse possível escapar da morte duas vezes seguidas. Justin contrariara o destino ao me salvar, e essa era a forma do mundo de colocar tudo de volta nos eixos. Eu não deixaria ninguém ir no meu lugar outra vez, mas não podia ir agora.
— Quanto tempo dura a contagem dela? E o que acontece quando acaba?
— O tanto de tempo que ela ganhou para concluir o serviço. A cada encontro que tem com você, é uma marca. E acho que já sabe o que acontece quando o tempo acaba.
Engoli em seco. Viver não tinha mais muito sentido, mas morrer pelas mãos de Annelise não devia ser muito agradável. Eu podia ter uma ideia da criatividade que ela tinha para isso. E aposto que seria mais engenhosa para mim. Ela me odiava.
— Vocês não podem ficar comigo. Se ela achar você, Ryan, acabou. E vai acabar suspeitando de Caitlin. Vocês têm que ficar longe de mim.
Ryan me encarou com irritação por um segundo, depois desistiu e voltou a se concentrar nos seus pensamentos. Eu continuei:
— Eu vou para Boston e vocês ficam aqui, e então dou meu jeito. Vocês não são responsáveis por mim. Ela não suspeita do seu envolvimento.
— Faith, fecha a matraca, eu estou pensando.
Respirei fundo, lhe dando as costas e falando por cima do ombro:
— Tudo bem, pense. Enquanto isso, vou para a galeria. Supere minha ideia, ou depois do expediente, estarei em Boston.
— Você não pode ir simplesmente trabalhar! — ele protestou quando cheguei a porta.
— Preciso do dinheiro para pagar minha passagem — respondi, voando pelo corredor.
Minha carga horária se iniciava às uma da tarde. Eu não estava atrasada, mas não ficaria naquele cubículo de pavor. Ryan precisava de espaço para pensar, pois bem, eu também. E alguma coisa me dizia que Annelise não me procuraria tão cedo. Pelo menos não até completarem-se 24 horas do nosso último encontro. Ela gostava dessa espera de tortura. Só não entendia porque não me marcara desde que nos vimos no restaurante. Não que eu estivesse reclamando.
Ryan também parecia pensar o mesmo que eu, ele não viera atrás de mim, então pude passar a tarde toda com meus pensamentos, os quadros, e clientes. Clientes parcialmente insatisfeitos com meu atendimento meio desleixado naquele dia. Ao ver seus rostos distorcidos em uma careta, pensei seriamente em dar um mínimo escândalo. Eles não podiam reclamar por não me terem inteiramente para si, não quando eu estava ocupada demais arquitetando um plano para fugir de uma assassina, tirar das minhas costas o alvo de uma Companhia de assassinos, resgatar os irmãos do meu falecido namorado, e achar minhas duas crianças favoritas perdidas. Sentia um cansaço incapacitante só de pensar nisso.
Com todo esse histórico, não me esforcei em dar um sorriso para Rafael quando ele entrou na galeria com seu humor radiante. A força que me dera no dia anterior me deixara mesmo em dívida com ele, além do mais, fora comigo deixar Maya na casa dela, e depois me deixara na minha; porém, a culpa não era minha que minha cabeça estivesse explodindo em problemas. Seria muito útil ter uma garrafa de whisky agora, mas se nem sóbria eu estava dando conta, bêbada não sobreviveria a uma hora.
— Pensei mesmo que você ainda estaria aqui — ele se debruçou no balcão, me olhando com o sorriso de covinhas.
Não parei de girar a cadeira em meia lua, apertando minhas têmporas.
— E aonde mais eu estaria? Meu turno acaba às dez — não controlei a hostilidade na voz.
Rafael fingiu não perceber.
— Cumpri o combinado de pedir sua dispensa à Hazel. Nosso encontro está marcado para às 18:00, se lembra?
E mais essa.
Fechei os olhos, expirando.
— Você esqueceu — me acusou, brincando — Tudo bem, não estou com os sentimentos feridos. Só venha comigo e tudo estará perdoado.
— Rafael, eu não...
— Você fez uma promessa. Não me diga que é uma destruidora de promessas, Faith Evans.
Promessas. Justin havia me prometido, olhando nos meus olhos, que tudo daria certo naquele vinte de novembro. O dia mais frio que eu me lembrava de toda a minha vida. Dali três dias fariam seis meses. Eu quase não podia acreditar que conseguira chegar até ali inteira. Tecnicamente.
Rafael tocou minha bochecha, uma faísca de compaixão deixava seu rosto ameno.
— Acho que você precisa mesmo sair. Tudo ainda vai estar do mesmo jeito quando voltar. Não acha que merece se distrair um pouco?
Fui absorvida por seu olho castanho escuro, ponderando. Eu dissera à Ryan que ele tinha até o fim do meu expediente, que normalmente ia até às dez horas. Depois disso, sabia que teria uma avalanche de acontecimentos para serem realizados, e eu provavelmente não conseguiria respirar. Tinha pensado em um plano para resolver tudo com quase um ato só. E para pensar em seu andamento, não precisava necessariamente estar dentro da galeria com clientes chatos e mal-educados. Rafael não merecia sair com um morto vivo ambulante, mas ele era minha válvula de escape.
Ele não permitiu que eu fosse para o apartamento me trocar, temendo que se eu entrasse, mudasse de ideia. Isso provavelmente aconteceria, Caitlin e Ryan não me deixariam sair com Annelise no meu encalço, e eu me deixaria convencer. Ainda não estava certa de que tomara a decisão mais correta, só que eu pisquei e já estava entrando dentro do IDS Center Crystal Court, no centro de Minneapolis.
O shopping fora uma opção quando comprei o presente de Caitlin no domingo, mas encontramos um mais perto. Sua estrutura busca argumentar que a globalização e o meio ambiente ainda podem coexistir; a praça, no centro do shopping, porta diversos bancos de madeira na cor branca, cada quatro ladeando um canteiro de flores portando uma árvore no meio, distribuídos em volta de uma fonte. Várias pessoas se utilizavam do espaço, fosse para mexer no pequeno aparelho celular — agora inerente ao ser humano —, ler algum livro, ou apenas conversar. O piso em um tom de marrom lembrava mesmo a terra. O arquiteto não economizara na criatividade. Acima de nós, o teto se assemelhava a uma escada, construído em alguns degraus de cubo de vidro.
Passamos por baixo da bandeira dos Estados Unidos pendurada no teto e subimos a escada rolante. Rafael me guiou entre as lojas até chegarmos ao fundo e encontrarmos uma porta amadeirada folha dupla, protegida por duas mulheres, vestidas com saias e camisas em um tom de vinho. Com um sorriso, a morena da esquerda pegou os convites que ele as ofereceu, e a porta foi aberta para nós. Em todo o trajeto estive preocupada que seguisse mais uma das ideias estúpidas de Ryan, mas assim que entramos, suspirei de alívio.
— Vladimir Kush! — reconheci, espiando os quadros expostos nas paredes.
— É um memorial dele, achei que você gostaria de vir aqui. Foi a primeira coisa que conversamos, se lembra? Tive essa ideia completamente sozinho — ele discursou, a empolgação beirando sua voz. Pela sua análise em meu rosto, concluía que não havia mandando tão mal dessa vez.
E ele estava certo. Deleitar-me com os quadros de Vladimir sempre me trazia certa paz no espírito que nunca consegui explicar. Isso parecia ser de um milênio atrás, mas eu esperava que seu efeito ainda permanecesse em meu corpo.
— É um sorriso isso o que estou vendo? — ele perguntou, provocativo.
Lhe dei o máximo parecido com um sorriso que eu podia. Ver cérebros gigantes flutuando no oceano se assemelhava ao mais próximo de um último pedido meu antes de morrer. Já o lago em forma de olho, com um peixe servindo de pupila, não precisava estar ali. Basicamente, foi como se Annelise estivesse me encarando, dizendo que estaria onde eu estivesse. Balancei a cabeça, passando para a próxima pintura, me abraçando.
— Essa é você tentando se esconder do mundo — Rafael disse risonho, apontando.
A mulher nua se escondia atrás de um livro proporcional ao seu corpo, colocando as pernas dos dois lados dele, forçando para mantê-lo fechado.
Revirei os olhos com humor, retrucando:
— E esse é uma representação sua e de seu cérebro.
African Sonata apresenta mamutes com cabeça de instrumentos de sopro, não sabia dizer se eram trompetes ou saxofones.
Ele riu, me dando um tapinha no ombro.
— O que acha de se tornar uma dançarina de Flamenco?
Observamos juntos a dançarina de costas na ponta dos pés, uma rosa invertida lhe servia de vestido, as pétalas cobriam a cintura e as pernas, enquanto as folhas verdes serviam de mangas.
A cada tela, uma nova provocação ou um comentário divertido, e Rafael conseguiu ao menos dividir o peso em meus ombros em dois. Assim, consegui organizar todas as minhas ideias. Haviam muitas chances de dar errado. Na verdade, a possibilidade de fazer exigências à Annelise parecia absurda ao analisá-la à luz da lógica. Mas era melhor do que não tentar nada.
— O que achou?
Nós já havíamos olhado todos os quadros e saíamos do memorial levando um folder explicativo sobre as obras.
— Tenho que dizer: você finalmente acertou.
Rafael riu, colocando as mãos no bolso, o andar relaxado.
— Tenho uma ótima intuição. Deveria ter seguido ela desde o começo.
Concordei, reforçando na minha lista de afazeres a surra que daria em Ryan.
— Por exemplo, ela me diz agora que você precisa de comida. Uma pizza?
Coloquei uma mão em seu ombro, demonstrando com a expressão o quanto estava impressionada.
— Você está goleando como o Messi agora.
Rafael me abriu um sorriso largo. Voltamos para o primeiro andar e entramos na fila do Tony’s Pizza Napoletana, enxergando de longe a opção de sabores passada na televisão do estabelecimento vermelho.
— O que vai ser? — ele me perguntou, coçando a barba rala.
Naquele instante, me indaguei por que um cara como ele insistia tanto em sair com alguém como eu. Rafael tinha um rosto muito bonito, traços fortes e bem marcantes só existentes na America Latina; se fosse biologicamente possível, eu diria que seus olhos eram pretos, combinando com os cachos pequenos do cabelo; seus ombros largos e braços fortes davam a sensação de que eu estava segura ao seu lado; sem contar o fato de que sua postura confiante e despojada me deixar quase completamente à vontade. Se Hanna o visse, seria amor a primeira vista. Isso depois de me xingar por não estar colaborando nas aparentes investidas que ele dava. Eu não tinha a autoestima tão alta assim para afirmar que ele tinha interesse em mim, mas só o fato de querer a minha amizade, era estranho.
— O que foi? — disse ele risonho, captando meu olhar quando procurou o motivo de não ter recebido uma resposta minha.
Dei de ombros.
— Só estava me perguntando por que você iria embora do México. Sempre o imaginei como um pais muito divertido e agradável para se viver.
Rafael meneou a cabeça.
— Depende do ponto de vista. Mas vim para cá por causa das oportunidades. Sabe como é, o Estados Unidos é o dono do capitalismo.
— E deixou toda a sua família lá?
— Não, minha mãe, pai, e irmã, vieram comigo — seu sorriso de canto ao falar da família foi perceptível, e ele não precisou de mais incentivo — Minha irmã tem dez anos e ela foi a que mais se empolgou com a mudança. Sonha em encontrar a Katy Perry na rua algum dia desses.
Eu o acompanhei quando riu, criando uma imagem da menina em minha cabeça. Cabelos negros longos e duas covinhas profundas o suficiente para portar todos os seus sonhos.
— Eles estiveram na inauguração semana passada — me disse, esperando que eu tivesse um insight, o qual nunca aconteceria. Estive totalmente aérea naquele evento. Por um momento, pude jurar que Justin estava lá, sentia sua presença no ar, como se fosse possível apalpá-la. No próximo segundo, fui dilacerada de dentro para fora. Maldito homem que se assemelhava a ele de costas.
Acabamos optando pelo sabor Margherita, segundo o vendedor, este foi o responsável por ganhar o campeonato de mundo da pizza em Napole, na Itália. As cores dos ingredientes foram escolhidas exatamente para ilustrar a bandeira da Itália; branco representado pela mozarela de búfala, verde pelo manjericão e vermelho pelo tomate. Escolhemos a mesa redonda mais próxima ao estabelecimento e Rafael prosseguiu com o assunto de sua família.
De alguma forma, ele conseguiu abrir uma brecha nos meus problemas para que eu lhe desse atenção, talvez fosse a maneira que gesticulava com as mãos, enfatizando tudo o que a boca expelia, ou os olhos fixos que me prendiam. Eu não podia ao menos descrever o quanto era prazeroso poder distrair minha cabeça com conversas despreocupadas, nada relacionadas ao meu risco de morte, resgate de crianças, e o vazio em meu peito.
— Você não faz ideia. Mamãe faz um Guacamole que eleva seu paladar à outro nível. Ela competiu no torneio local de receitas tradicionais e levou mil reais para casa.
— Isso sim é um feito. Competir é um lance de família, então — presumi.
— Lupita é a mais fissurada, falou em vencer e ela já está empolgada com a ideia, mesmo sem saber o que será preciso fazer.
Cortei mais um pedaço da pizza e coloquei na boca, tentada à levar aquela preciosidade ao cartório para adicionar Margherita ao meu nome. Todos os outros sabores de pizzas seriam convidados para a festa de casamento.
— Agora me conte sobre a sua família — Rafael pediu, tomando mais um pouco de vinho.
Senti-me imediatamente disposta a ir embora — levando a pizza comigo —, e desviei os olhos para qualquer lugar, de modo que não se interessasse muito pelo assunto.
— O que quer saber? — perguntei com reservas.
— Hm, não sei, eles também estão em Minneapolis?
— Boston.
Rafael não falou nada, uma forma discreta de me motivar a dar mais detalhes. Não mordia a isca, e ele continuou:
— Tem irmão?
— Um.
— E como é seu relacionamento com ele?
— Bom.
Seus talheres descansaram no prato, e senti seus olhos concentrados em mim.
— O que preciso fazer para que confie em mim? Assim poderemos ter uma conversa civilizada.
Não consegui deixar de notar a ironia daquele momento. Há quase um ano atrás, quando eu estava conhecendo Justin, me frustrava com sua ausência de resposta para perguntas simples. Eu abria minha vida pra ele, e suas falas sobre si mesmo eram monossílabas. O sentimento de conforto ao reconhecê-lo em mim não podia ser um bom sinal.
Abri a boca para responder Rafael, mesmo sem ter pensado em alguma coisa genial, e então o vi. Atravessando a praça havia uma loja da Calvin Klein, e ele estava parado em frente a porta. Uma touca vermelha cobria sua cabeça, a blusa de manga longa preta, e a calça da mesma cor, se responsabilizavam pelo restante. Seus olhos impassíveis estavam fixos no meu rosto.
O tempo parou, me comprimindo entre a realidade alternativa e a lógica, descendo o gelo por minhas veias. O garotinho com um balão de hélio em forma de avião entrou em meu campo de visão, batendo os pés e discutindo com a mãe. Não tive tempo de levantar e me esquivar do impedimento, eles já estavam saindo da frente, e ele havia evaporado.
Tive a sensação de que cada um dos meus órgãos caía aos meus pés. Claro que aquela fora mais uma alucinação da minha mente quebrada. Eu só não estava pronta para recebê-la naquele momento, não cometia nenhum ato irresponsável que me deixaria em perigo. Ou estava? Pensar que Rafael podia ser perigoso me faria rir. Delimitei uma alternativa diferente, algo como minha consciência me chamando de volta aos meus dramas cotidianos. O mundo ruía ao meu redor, eu não podia simplesmente vir ao shopping com um amigo.
— Tudo bem, vamos fazer assim — Rafael expirou, tirando a mão de cima da minha, e só aí fui perceber que ele a havia colocado ali — Preciso ir ao banheiro agora, e você usa esse tempo para pensar se quer conversar comigo. Se não se sentir confortável a me dizer nada, eu mesmo preencho todo o silêncio.
Desestruturada com o que ocorrera há pouco, não consegui me pronunciar enquanto ele saía, jazendo na minha cadeira. Parecia ilógico o vazio pulsar, deteriorando mais um pouco do meu corpo já em estado de decomposição. Fechei os olhos, respirando devagar pela boca para ter certeza de que aquela pressão esmagadora em meu peito não me traria um ataque cardíaco. Esvaziei todos os meus pensamentos, me concentrando apenas no vai-e-vem da respiração.
A cadeira na minha frente se arrastou, e cogitei pedir para Rafael me levar embora. Assim que abri os olhos, entretanto, Maya me encarava.
— Oi Maya — cumprimentei-a com um pulinho de sobressalto na cadeira. Sobressalto era apelido, quase levantei e saí correndo.
Restaurei os fragmentos da compostura que eu usava com ela, mas tinha certeza de que meu sorriso não passava de uma distorção facial.
Tão preocupada comigo mesma, fui perceber sua expressão mortal depois de segundos. O alerta vermelho em minha cabeça disparou o instinto de proteção, e antes mesmo de formular teorias para sua frieza, busquei me livrar dela.
— É um prazer te ver, mas já tem uma pessoa sentada comigo — usei a desculpa, camuflando qualquer sinal de nervosismo.
Ela deu um sorriso cínico.
— Com Rafael, certo?
Se o problema se tratava apenas de macho, eu não precisava me preocupar.
Mas meus músculos permaneceram rígidos.
— Sim, como amigos — defendi-me, meticulosamente me retraindo.
— Percebo bem o olhar de amigos que ele te dá, muito diferente do que me direcionava ontem.
Firmei os pés no chão, pressionando para arrastar a cadeira disfarçadamente com o quadril.
— Essas coisas se resolvem com o tempo...
— Você deve entender mesmo dessa coisa de se aproximar de alguém com o tempo. Quanto tempo você leva?
O alerta vermelho se passava para roxo, um neurônio começou a espalhar a ideia. “Não é por causa do Rafael que ela está aqui, não é por causa do Rafael que ela está aqui”.
Continuei a buscar calma, aquilo não se passava de paranoia minha.
— Não entendi — forcei uma risada sem graça passando a mão por baixo da mesa para pegar minha bolsa aos meus pés.
— Conte-me mais uma vez como você se aproximou de mim porque se “identificou comigo” — ela fez aspas com as mãos.
Ok. Não era paranoia. Criei frases evasivas inutilmente. Seus olhos estavam duros, ela não acreditaria em nenhuma palavra que eu dissesse. Eu precisava ficar o mais longe possível dela. AGORA.
Olhei meu pulso, lembrando tarde demais que eu não usava relógio.
— Eu devo estar atrasada, tenho que encontrar alguns amigos agora. Você avisa Rafael para mim? Pode terminar de comer a pizza com ele, tenho certeza de que ficará muito mais feliz com a sua companhia do que com a minha.
Levantei-me devagar, concentrada nos movimentos dela. Estávamos em público, Maya não me atacaria aqui. Atacaria?
— Não vai nem terminar esse pedaço no seu prato? — perguntou petulante.
— Não estou mais com fome. Te ligo depois.
Passei a alça da bolsa no braço, andando a passos rápidos sem uma rota premeditada. Só precisei virar levemente a cabeça para a direita para ver que ela vinha atrás de mim. O ar entalou na minha garganta, eu estava ferrada. Estudei o espaço ao meu redor, tentando identificar mais empregados da Companhia. Deveria saber que essa vantagem não estava ao meu alcance. Não há uma característica física certa que denuncie um assassino, eles se misturam em nosso meio como nossos amigos, irmãos, namorados, familiares, e alguns de nós nunca descobrimos seus segredos mais obscuros.
Xinguei mentalmente ao ver que a saída ficava para o lado contrário de onde eu estava indo, mas se eu tentasse voltar, encontraria Maya no meio do caminho. Abafei o desesperador pensamento de que ela pudesse estar me conduzindo para onde bem queria. Vislumbrei a placa apontando para o estacionamento, e sem pensar duas vezes, corri para o lance de escadas. Uma vez nos degraus pouco movimentados, acelerei os passos, pulando de dois em dois para chegar ao subsolo e poder fugir livremente.
Fui recebida pelo calor do ar concentrado de gasolina, borracha dos pneus no chão e motor. O cheiro denso me deixou claustrofóbica, mas disparei entre os carros, torcendo para algum deles estar saindo e me fornecer uma carona. A percepção dolorosa de que a única pessoa ali travava o carro para entrar no shopping, quase me fez refazer o caminho para o aglomerado de pessoas. O som do sapato de Maya nos degraus me avisou quer a ideia era péssima.
Olhei para todos os lados, choramingando pelo estacionamento ser tão grande. Eu conseguia ver a luz natural do sol entrando pela saída de carros a uns 600 metros para a esquerda, então corri, fazendo o mínimo de barulho que eu podia com os pés, me abaixando para me esconder atrás dos veículos.
— Faith? — Maya cantarolou, o som ecoando — Precisamos conversar.
Eu fazia uma ideia da conversa que ela queria ter a três, nós duas e sua arma de fogo.
— Você sabe que assim está declarando culpa no cartório? Eu nem ao menos te disse coisa alguma.
Não soube distinguir se ela estava correndo, mas não diminui meu ritmo, me detendo apenas quando o bloco de carros terminou para investigar se era seguro ir pela pista para o próximo.
— Você colocou uma corda no meu pescoço, Evans, sabia disso? Fui muito burra para não perceber que me usava desde o começo.
Inclinei-me na lateral do Ford, procurando onde ela estava. Maya calculava cada passo dado a três carros de mim. Ela também devia estar correndo, e eu não podia sair do meu esconderijo.
— Vou propor um trato com você, se me devolver Jazmyn e Jaxon, prometo que você ainda vai poder andar. Aonde você os escondeu, querida?
Aonde eu os escondi? Como os esconderia se não os havia encontrado ainda?
— Você os sequestrou como meio de troca por causa do seu contrato, não foi?
E aí estava, dito em voz alta. A ameaça invisível pairava sobre minha cabeça novamente.
— Não vai funcionar. Devolva os dois e viva o tempo que te resta com todos os membros intactos.
Engatinhei para a traseira do carro quando pude enxergar seus pés, aumentando a distância entre nós novamente. Se ela seguisse reto, eu podia voltar ao shopping e sair pelas portas automáticas.
— Por que está se escondendo? Não é de mim que precisa ter medo. Annelise tem um grande trabalho pela frente.  
Ela parou no meio da pista, colocando as mãos na cintura. De fato, não possuía uma arma em mãos, mas isso não foi capaz de acalmar meus batimentos cardíacos. Recuei para ficar atrás do carro, sem prestar atenção que minha bolsa ficara presa na placa. O efeito elástico me puxou de volta para a frente e eu cai de joelhos no chão.
Annelise se virou no mesmo instante e seu rosto enfurecido não tinha nenhuma relação com a voz anteriormente agradável.
— Aí está você.